domingo, 4 de março de 2012


A educação e a fábrica de corpos: a dança na escola
Márcia Strazzacappa*


RESUMO: O movimento corporal sempre foi dentro do espaço escolar uma moeda de troca. A imobilidade física funciona como punição e a liberdade de se movimentar como prêmio. Estas atitudes evidenciam que o movimento é sinônimo de prazer e a imobilidade, de desconforto. Mas se é através do movimento que o indivíduo se manifesta, que indivíduos iremos formar se impedimos sua expressão? O presente texto abordará a questão da introdução da dança no espaço escolar, relatando e refletindo sobre o trabalho que é desenvolvido no curso de Licenciatura em Dança da Unicamp e partilhando das experiências de professores da rede de ensino que fizeram o curso de "atividades corporais artísticas para professores da educação formal" em Tupã (SP).
Palavras-chave: dança, corpo, educação, formação professor, arte-educação


Introdução: O corpo no espaço escolar
O indivíduo age no mundo através de seu corpo, mais especificamente através do movimento. É o movimento corporal que possibilita às pessoas se comunicarem, trabalharem, aprenderem, sentirem o mundo e serem sentidos. No entanto, há um preconceito contra o movimento. Solange Arruda, na introdução de seu livro Arte do movimento, afirma que "é mais chic, educado, correto, civilizado e intelectual permanecer rígido. Os adultos, em sua maioria, não se movimentam e reprimem a soltura dascrianças."1 Isso começa em casa e se prolonga na escola.
Embora conscientes de que o corpo é o veículo através do qual o indivíduo se expressa, o movimento corporal humano acaba ficando dentro da escola, restrito a momentos precisos como as aulas de educação física e o horário do recreio. Nas demais atividades em sala, a criança deve permanecer sentada em sua cadeira, em silêncio e olhando para a frente. Ciro Giordano Bruni afirmava a esse respeito que "virou quase regra estabelecer entre a arte e a ciência uma lastimável distinção: a primeira se aprende como uma atividade lúdica e a segunda, de uma maneira séria e constrangedora."2 Sua crítica não se fixa apenas na questão da ausência do lúdico nas disciplinas científicas da escola, mas também na ausência de seriedade nas disciplinas artísticas, comportamento que tende a acentuar a visão de que o ensino de arte é supérfluo.
A noção de disciplina na escola sempre foi entendida como "não-movimento". As criançaseducadas e comportadas eram aquelas que simplesmente não se moviam. O modelo escolar-militar da primeira metade do século XX era aplicado desde o momento em que a criança chegava na escola. As filas por ordem de tamanho para se dirigirem às salas de aula, o levantar-se cada vez que o diretor ou supervisor de ensino entrava na sala etc. Atualmente, são raros os estabelecimentos escolares que mantêm este tipo de atitude, encontrado ainda apenas em escolas de cunho religioso e em algumas escolas públicas de cidades pequenas do interior do estado. Nas escolas da rede pública das grandes cidades, esta realidade já não existe. Apesar da ausência destas atitudes disciplinares, a idéia do não-movimento como conceito de bom-comportamento prevalece. Muitas escolas aboliram as filas e os demais símbolos de respeito a diretores e professores; no entanto, foram criadas outras maneiras de se limitar o corpo.
O movimento corporal sempre funcionou como uma moeda de troca. Se observarmos brevemente as atitudes disciplinares que continuam sendo utilizadas hoje em dia nas escolas, percebemos que não nos diferenciamos muito das famosas "palmatórias" da época de nossos avós. Professores e diretores lançam mão da imobilidade física como punição e da liberdade de se movimentar como prêmio. Constantemente, os alunos indisciplinados (lembrando que muitas vezes o que define uma criança indisciplinada é exatamente o seu excesso de movimento) são impedidos de realizar atividades no pátio, seja através da proibição de usufruir do horário do recreio, seja através do impedimento de participar da aula de educação física, enquanto que aquele que se comporta pode ir ao pátio mais cedo para brincar. Estas atitudes evidenciam que o movimento é sinônimo de prazer e a imobilidade, de desconforto.
Os cursos de Educação Artística, cujo caráter "menos formal" poderiam possibilitar uma maior mobilidade das crianças em sala de aula, tendem a priorizar os trabalhos em artes plásticas (desenho, pintura e algumas vezes escultura), atividades onde o aluno acaba tendo de permanecer sentado. Embora a LDB 9394/96 garanta o ensino de Arte como componente curricular obrigatório da Educação Básica representado por várias linguagens – música, dança, teatro e artes visuais –, raramente a dança, a expressão corporal, a mímica, a música e o teatro são abordados, seja pela falta de especialistas da área nas escolas, seja pelo despreparo do professor.
Apesar destas atitudes estarem muito presentes, algumas experiências (que caminham exatamente no sentido oposto) têm nos mostrado o quanto o movimento pode contribuir para se criar no espaço escolar um outro ambiente. A introdução de atividades corporais artísticas na escola, ou seja, a realização de trabalhos de dança-educativa ou dança-expressiva, como são comumente chamadas (embora não goste muito destes nomes, afinal, toda dança é educativa e expressiva), tem mudado significativamente as atitudes de crianças e professores na escola. A dança no espaço escolar busca o desenvolvimento não apenas das capacidades motoras das crianças e adolescentes, como de suas capacidades imaginativas e criativas. As atividades de dança se diferenciam daquelas normalmente propostas pela educação física, pois não caracterizam o corpo da criança como um apanhado de alavancas e articulações do tecnicismo esportivo, nem apresentam um caráter competitivo, comumente presente nos jogos desportivos. Ao contrário, o corpo expressa suas emoções e estas podem ser compartilhadas com outras crianças que participam de uma coreografia de grupo.

A dança e seus diferentes fins
Quando se fala em dança na escola, milhares de imagens começam a povoar nossas mentes. Afinal, de que dança estamos falando? Ao chegarmos nas instituições, costumamos interrogar as crianças e os adolescentes sobre sua compreensão de dança. É interessante observar que, se há alguns anos atrás, a primeira imagem que vinha à mente destes jovens era a figura da bailarina clássica nas pontas dos pés, hoje essa imagem (embora ainda presente) já está sendo substituída por outras trazidas pela mídia. As respostas variam entre as dançarinas do "Tchan" e algumas pop stars norte-americanas (nota-se a predominância da figura feminina). Quando interrogados, então, sobre o que querem aprender numa aula de dança, as respostas se multiplicam, indo do ballet clássico às danças de rua.
No próprio curso de Licenciatura em Dança da Unicamp também encontramos diferentes expectativas por parte dos alunos. Uns têm interesse direto em trabalhar a dança nas escolas da rede de ensino, logo, a dança dita "educativa". Outros, em trabalhar em escolas especializadas como conservatórios e academias, com técnicas de dança específicas para a formação do profissional. Há ainda os que preferem trabalhar o aspecto social da dança, ou seja, a dança como atividade de reinserção social em programas de apoio a pessoas desfavorecidas. Todas estas expectativas não podem ser ignoradas. Elas revelam a própria abrangência da área de dança e temos, assim, de aprender a lidar com elas, sem se perder de vista o objetivo das licenciaturas, ou seja, habilitar o futuro profissional para trabalhar no ensino fundamental e médio.
Jacqueline Robinson,3 bailarina e educadora francesa, elaborou um diagrama onde indica de forma clara a gênese e as diferentes aplicações da dança no mundo contemporâneo.


Toda dança, não importa qual a estética que lhe é inerente, surge da profundeza do ser humano, ou, como Robinson nomeou, surge da "magia" e adquire diversas funções a partir de três motivações principais: a expressão, o espetáculo e a recreação (ou jogo).
A expressão é a motivação mais significativa da dança, sendo representada na árvore de Robinson como o tronco principal. É nesse tronco que se situam o teatro, a dança contemporânea, a educação e o lazer. Ao redor deste tronco principal, com uma bifurcação para a recreação e outra para o espetáculo, estão as danças populares. Robinson fez esta divisão, uma vez que estas manifestações podem ser a expressão de uma comunidade, como rito ou jogo, e ainda serem exploradas através de espetáculos. Há ainda as manifestações populares consideradas "puras", ou seja, que não perderam seu caráter original de rito, que Robinson localizou num tronco à parte, entre a recreação e a expressão, chamando-o de "danças primitivas", na falta de uma melhor expressão para intitulá-las.
No tronco recreação encontramos as danças amadoras, as danças de salão, a ginástica rítmica e o jazz, todas técnicas praticadas por indivíduos sem interesse profissional. Percebe-se que o jazz teve sua origem na recreação, profissionalizando-se posteriormente, ao encontrar seu caráter espetacular. O inverso aconteceu com a dança clássica. De origem estritamente espetacular e profissional, com o decorrer dos anos ganhou adeptos amadores que buscam essa rígida técnica como complemento da educação corporal formal.
Numa tentativa de atualizar esta árvore, poderíamos acrescentar muitas outras danças: Algumas danças populares brasileiras, como o forró, o samba, a lambada e recentemente o axé, que também conquistaram os espaços dos cursos de dança de salão ao lado das imortais valsa, tango e bolero. As danças provenientes de regiões e países específicos, como a dança do ventre, a dança flamenca, o sapateado americano e irlandês (tão em voga atualmente) e as danças de rua (ou street dance), poderiam ser introduzidas como um galho que se inicia nas expressões culturais (folclóricas) e se ramifica tanto para o campo profissional do espetáculo, quanto para a área de recreação (amadora). Um bom exemplo são as danças de rua. Elas tiveram origem nos guetos negros norte-americanos, como forma de protesto, e ganharam adeptos no mundo todo. Como o rap, o funk e o break, muitas dessas danças já saíram das ruas e invadiram as academias e palcos teatrais.
Neste diagrama, fica evidente a diferenciação que é feita entre o fazer amador, o profissional, o educativo e as manifestações culturais. Mas seria o ensino de dança um só para todos? No curso de Licenciatura em Dança, deixamos em aberto a opção estética. O que importa não é a linha escolhida, mas como através dela pode-se trabalhar os elementos que consideramos importantes para o desenvolvimento integral do indivíduo na escola.

Não sem problemas...
Em instituições onde a dança começou a ser trabalhada, professores e diretores sentiram a diferença de comportamento de seus alunos. A começar pelo número de faltas, que diminuiu razoavelmente. A participação dos alunos em outras atividades promovidas pela escola (festas, semanas culturais e científicas, gincanas etc.) começou a ser mais efetiva. De maneira geral, os professores são unânimes ao afirmar que o interesse do aluno pelo ensino melhorou, como se, através das atividades de dança na escola, o aluno tivesse reencontrado o prazer de estar nesta instituição.
No entanto, tudo isso não se deu sem problemas. A experiência com os alunos estagiários da Licenciatura em Dança da Unicamp tem mostrado que, se a dança está aos poucos conquistando um espaço diferenciado dentro da formação escolar fundamental, muitas barreiras ainda têm que ser derrubadas. A primeira delas é a receptividade dos próprios professores da escola. Alguns tendem a "menosprezar" o trabalho, considerando a dança um "luxo" de menor importância no conjunto das disciplinas oferecidas pelo currículo. Estes professores acabam assumindo posturas que dificultam o trabalho dos estagiários, como, por exemplo, intitularem o trabalho "aula de recreação". Ao ouvirem esta nomenclatura, os alunos saem correndo dispersos para o pátio e ninguém consegue mais reagrupá-los para a aula. Alguns professores que aprovam a iniciativa, por outro lado, reclamam que as crianças ficam mais agitadas nos dias em que há atividades de dança. Assim, para "acalmar" a classe, acabam usando a famosa "chantagem": ou vocês ficam quietos e prestam atenção, ou não irão para a aula de dança. A segunda barreira diz respeito a um outro tipo de preconceito, desta vez não do professor, mas do próprio aluno. Em algumas escolas, os estagiários são obrigados a chamarem o trabalho de "expressão corporal", pois se o nome "dança" aparece, muitos meninos se recusam a participar da atividade por não serem "mulherzinhas" [sic].4
No trabalho com adolescentes, a realidade é outra. Quando interrogados sobre o que é a dança ou sobre qual dança gostariam de aprender na escola, a maior parte dos jovens (sobretudo os rapazes) opta pelas danças de rua5 (rapfunkbreak). Apesar destas danças possuírem uma movimentação considerada agressiva pelos adultos, elas fazem parte do universo destes jovens. A violência é um dos temas mais explorados. Eles simulam lutas, fazem gestos obscenos, criam na execução da coreografia grupos que se enfrentam etc. No entanto, é interessante notar que tudo isso é a "ritualização" da violência, não a violência em si. Há exemplos de grupos de jovens que saíram da marginalidade através das danças de rua. Como eles mesmo afirmam: "através da dança a gente `canaliza' nossa agressividade e, assim, não precisamos mais ser violentos com ninguém".6 Dentro da dinâmica das danças de rua, para se aprender uma coreografia, os participantes devem prestar muita atenção para "pegar os passos" e depois "aprender o estilo". Como as coreografias são feitas por todos os participantes do grupo e ao longo de vários encontros, faltas não podem acontecer, senão perde-se uma parte das seqüências (que são complexas e num ritmo acelerado) e atrapalha-se o conjunto final. Assim, a disciplina e a responsabilidade são compreendidas, aprendidas e incorporadas no dia a dia destes jovens. Apesar de todos dançarem os mesmos movimentos, há momentos onde um se destaca, realizando sua "improvisação". É nesta hora que o jovem tem a oportunidade de trabalhar a sua individualidade, mostrando o seu "estilo" pessoal e sua virtuosidade, visto que é no solo que o jovem realiza as acrobacias mais complexas.

Compartilhando experiências – oficinas
Em junho passado, aproveitando minha visita à Tupã para participar do I Tupã-Dança,7ministrei uma oficina "teórico-prática" de atividades corporais artísticas para professores do ensino formal. O curso contou com a participação de professores de educação física, educação artística, línguas, dança, e professores de pré-escola. Havia tomado o cuidado de intitulá-la oficina "teórico-prática" (embora não concorde com esta dicotomia teoria/prática, nem com esta expressão que junta, separando), com o intuito de deixar claro que haveria uma parte prática e que todos, sem exceção, deveriam participar de todas as atividades propostas.
Alguns poucos professores participantes esperavam receber fórmulas pré-fabricadas ou receitas prontas de como trabalhar a dança no espaço escolar. Tinham a expectativa de aprender alguns "passinhos" (como disseram) ou mesmo algumas coreografias para poderem, mais tarde, transmitir a seus alunos, seja na festa junina, que se aproximava, seja nas comemorações folclóricas do mês de agosto. Normalmente, professores com este tipo de expectativa costumam ficar apavorados cada vez que chega uma data comemorativa e que se vêem "obrigados" a preparar algum evento com as crianças. Eles não acreditam em seus potenciais criativos e preferem copiar fórmulas prontas. No entanto, havia deixado claro que este não era o objetivo da oficina. Não havia "prato-feito" para "pronta-entrega", onde basta telefonar que a comida chega em casa, sem trabalho algum. Muito pelo contrário, todos teriam de erguer as mangas, pôr a mão na massa e se sujar para "aprender fazendo". O objetivo da oficina era proporcionar aos professores da rede de ensino a oportunidade de aprenderem a "pensar com o corpo". E como fazer isso senão através do próprio movimento?
As atividades práticas se baseavam em elementos trabalhados em aulas de dança. Num primeiro momento, focamos o desenvolvimento da consciência corporal utilizando os conceitos oriundos da educação somática. Grosso modo, a educação somática8 é entendida como atividades onde o corpo é trabalhado de modo a integrar todos os aspectos que o compõem: social, espiritual, psíquico, físico etc. Assim, temos as práticas como as técnicas de Alexander, Feldenkrais, Body-Mind-Centering, Eutonia, Fundamentals®, entre outras. Como representantes da vertente brasileira de educação somática, temos o trabalho de Klauss Vianna e de José Antonio Lima. Num segundo momento da oficina, trabalhamos a criação coreográfica, através da exploração espacial, baseando-nos nos preceitos de Rudolf von Laban (1879-1958). (Não iremos aqui discorrer longamente sobre o trabalho desenvolvido por este reformador do movimento, visto que outros autores ficaram incumbidos de fazê-lo. No entanto, não podemos deixar de falar sobre ele, pois quando se pensa em dança-educativa, seu nome é um dos mais citados). Este coreógrafo austro-húngaro e estudioso do movimento revolucionou a maneira de se pensar o corpo em movimento. Ele desenvolveu um método de análise do movimento, definindo os elementos que o compõem. Elaborou igualmente um método de escrita em dança, a Labanotiation. Seus trabalhos têm diferentes aplicações que vão da educação da dança, da criação coreográfica ao trabalho terapêutico. Seu trabalho foi introduzido no Brasil por Maria Duschenes.9
Acreditava-se que nesta oficina seria muito mais salutar ensinar os professores a pensar com o corpo, que ficar discutindo sobre o corpo, como se este fosse um objeto à parte de nós mesmos. Ao mexer com o corpo, ao criar, ao se expressar, estes professores estavam adquirindo informações, sensações que seguramente iriam, mais tarde, nutrir e enriquecer suas análises e discussões teóricas. Acreditava-se que, numa oficina, deveria oferecer-lhes o que não encontrariam em livros: a oportunidade de tocar e ser tocado, de expressar e ser visto, de falar e ouvir com o corpo todo. As atividades proporcionariam explorações sensoriais. O grupo de participantes, a princípio tímido, foi aos poucos se soltando e ao final se entregou completamente ao jogo, explorando o espaço, dançando e cantando.
Gostaria de ressaltar o comentário de uma professora da rede pública aposentada, Gilcélia, que trabalha atualmente no setor privado. Esta tentou escapar de uma das atividades propostas que consistia em ser carregado pelo grupo em duas situações distintas: com o corpo contraído e com o corpo relaxado. Apesar de sua tentativa de fuga, não teve escapatória e foi logo carregada. Quando se esticava no chão, aguardando ser levantada, não parava de exclamar: Vocês não vão conseguir! Vocês não vão me agüentar! Qual não foi o seu espanto (e também do grupo) ao perceber que estava a dois metros do chão, segura por dezenas de mãos que a suspenderam acima do nível de suas cabeças. Ao final do trabalho, emocionada, percebeu o quanto havia sido importante participar do exercício, pois percebera que na verdade a imagem que tinha de si própria não correspondia àrealidade.10 Sentiu-se mais leve e feliz. Seguramente, esta sensação lhe ensinou muito mais e foi-lhe muito mais importante que qualquer discussão teórica a respeito dos benefícios do desenvolvimento de um trabalho corporal dentro da escola.
Os professores, ao sentirem no corpo estas descobertas, podem compreender melhor o que se passa nos corpos de seus alunos, crianças ou adolescentes. Ao experimentarem o prazer do movimento e os benefícios que estes trazem, tanto para o físico quanto para o mental, podem ver com outros olhos estas atividades na escola. E o mais importante, ao invés de simplesmente "memorizarem" passos coreográficos, estes professores terminaram a oficina com um instrumental muito maior para realizarem suas próprias criações.

A educação e a fábrica de corpos
A dança na escola deve ultrapassar a idéia de ser voltada apenas à criança e ao adolescente. Após esta experiência com os professores da rede de ensino de Tupã, ficou mais evidente que trabalhar com os professores é importante não apenas para a formação destes (e para o bem estar dos mesmos, evidentemente), mas também que o corpo do professor funciona como modelo para o aluno.
É inerente ao ser humano sua capacidade de imitação. A criança aprende através da reprodução dos gestos dos adultos. Marcel Mauss, sociólogo e antropólogo francês e um dos primeiros a classificar as técnicas do corpo,11 concluiu que todas as ações humanas, desde a mais simples posição deitada (simples entendido como mínimo esforço físico solicitado) até as ações mais elaboradas, como nadar (que requer um treinamento específico), são técnicas adquiridas por meio da imitação. O adulto faz e a criança copia.
O ensino da dança e das demais artes da tradição oral é feito por meio da observação e reprodução do observado. Na maioria das técnicas sistematizadas e codificadas, o professor faz e o aluno imita. Poderíamos pensar que no caso da dança na escola – onde se trabalha mais a exploração e a criação do próprio aluno que o aprendizado de passos específicos – a imitação não está presente. No entanto, essa idéia é equivocada. Alguns estagiários ficavam preocupados com a questão de dar exemplos de movimentação ou de servir de modelo. No entanto, eles próprios perceberam que, muitas vezes, em suas criações, as crianças reproduziam gestos oriundos de grupos vistos na televisão ("dança da garrafa", da "bundinha" etc.). Se os estagiários não são e não querem assumir um papel de modelo, a mídia o é a todo momento. Cabe agora a cada um refletir sobre qual modelo considera mais interessante e, sobretudo, trabalhar com as crianças o desenvolvimento do olhar crítico.
Temos que ressaltar que não apenas a movimentação serve de modelo. A própria postura também é objeto de imitação. Lembro-me de um professor de dança que vivia corrigindo a postura de seus alunos e que não sabia mais o que fazer, pois eles acabavam sempre voltando àquela indesejada. Um dia, ele veio me procurar na tentativa de solucionar esta questão. "O que fazer? Que tipo de exercício posso estimular?" – perguntava. Ao vê-lo, minha resposta foi clara e curta: "Corrija você a sua própria postura que os alunos, aos poucos, corrigirão a deles." Não adianta o professor corrigir insistentemente a postura dos alunos se o que lhes fala mais forte não é a palavra (verbo) e sim o modelo vivo (corpo).
Desenvolver um trabalho corporal com os professores teria uma dupla função: despertá-los para as questões do corpo na escola e possibilitar a descoberta e desenvoltura de seus próprios corpos, lembrando que, independente das disciplinas que lecionam (português, matemática, ciências etc.), seus corpos também educam. É comum percebermos pessoas que adquirem a maneira de gesticular daquele com quem convive cotidianamente. Basta pensarmos nos gestos que "herdamos" de nossos pais ou observarmos velhos casais. Há a tendência de se reproduzir a mesma movimentação de cabeça, adquirir o mesmo "tic" ou assumir a mesma postura. Assim, diante de uma classe de crianças, queiramos ou não, somos sempre um modelo para a imitação pela mímesis. Dessa forma, acredito que os cursos de formação de professores, seja a graduação em Pedagogia ou as demais licenciaturas específicas, deveriam pensar com seriedade no oferecimento de disciplinas de cunho artístico corporal.
Fica claro que a questão da educação corporal não é de responsabilidade exclusiva das aulas de educação física, nem de dança ou de expressão corporal. O corpo está em constante desenvolvimento e aprendizado. Possibilitar ou impedir o movimento da criança e do adolescente na escola; oferecer ou não oportunidades de exploração e criação com o corpo; despertar ou reprimir o interesse pela dança no espaço escolar, servir ou não de modelo... de uma forma ou de outra, estamos educando corpos. Nós somos nosso corpo. Toda educação é educação do corpo. A ausência de uma atividade corporal também é uma forma de educação: a educação para o não-movimento – educação para a repressão. Em ambas as situações, a educação do corpo está acontecendo. O que diferencia uma atitude da outra é o tipo de indivíduo que estaremos formando. Cabe agora a cada um de nós fazer a reflexão.


The education and the body's factory: dance in school
ABSTRACT: For a long time, body's movement at school has been treated as a prize or a punishment. Physical immobility works as a punishment and freedom of movement works as a prize. These procedures show that to move is a pleasure and to stay still is uncomfortable. But, if movement is the way that people express themselves, what kind of people are we educating if we repress their expression? This article discuss the introduction of dance studies in school, based on the work is being developed with the students of the Dance Department at the State University of Campinas. It also shows the experience of the teachers who participated in a workshop "artistic body's activities for teachers of basic education" realized in Tupã (SP).
Key words: dance, body, education, teacher education, art-education.

Notas
1. ARRUDA, Solange. A arte do movimento. São Paulo: PW Editores Associados, 1988, p. 11.
2. BRUNI, Ciro Giordano. Pour une danse d'éveil et d'initiation, le discernement de la distance, In: L'enseignement de la danse et après!, Rencontres dans les Universités Paris V e Paris VIII, Paris: Germs, 1998, p. 78.
3. ROBINSON, Jacqueline. Le langage chorégraphique. Paris: Vigot, 1978.
4. Sobre a discussão do gênero na construção social, ver SOUZA, E.S. e ALTMANN, H. Meninos e meninas: expectativas corporais e implicações na educação física escolar,Cadernos Cedes nº 48, 1999.
5. Cf. edição especial da Revista Caros Amigos, São Paulo, set. 1998.
6. Comentário de um dos integrantes do grupo Guardiões do RAP, de Ourinhos/SP, junho 2000.
7. I Tupã-dança – evento promovido em parceria pela Secretaria de Estado da Cultura, Secretaria Municipal de Educação e Cultura (Srª Joana Schelini) e Academia Maria Cristina Sismeiro Dias, 16 e 17 de junho de 2000.
8. A este respeito, ver os artigos do Caderno Especial "Estudos do Corpo", organizado por Christine Greiner, do GIPE-CIT, UFBA (1999) e os números 28 e 29 da Revista Nouvelles de Danse, Bruxelas, 96/97.
9. Sobre Maria Duschenes, ver o capítulo "As mães da modernidade" no livro Dança moderna, de Cássia Navas e Lineu Dias, São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, 1992.
10. Cf. Moshe Feldenkrais, O poder da auto-transformação, São Paulo: Summus, 1978. Ele afirmava que nós agimos de acordo com nossa auto-imagem. Na verdade temos um potencial de movimento muito maior do que utilizamos normalmente. No entanto, a imagem que temos de nós mesmos cria barreiras que impedem a exploração total de nossas capacidades. Ver também, do mesmo autor: Consciência pelo movimento (1989).
11. Ver Marcel Mauss, Les techniques du corps, Journal de Psychologie, XXXII, nº 3-4, 15 mars/15 avril, 1936, publicado posteriormente em Sociologie et Anthropologie, Paris: PUF, 1966.


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* Professora do Departamento de Metodologia do Ensino da Faculdade de Educação da Unicamp e Doutora em Estudos Teatrais e Coreográficos (Universidade de Paris). E-mail:m.strazzacappa@uol.com.br
 

Apresentação


Por muito tempo, a Dança e a Educação mostraram-se pertencentes a universos antagônicos, diferentes, distantes e isolados, a ponto de Fontanella1 (1985) afirmar que uma nega a outra, não podendo estar aliadas porque (...) a dança unifica o homem, a educação precisa dividi-lo; a dança une os homens, a educação os separa; a dança não visa à produção, a educação visa primeiramente e fundamentalmente à produção; etc. Já é chegada a hora da desmitificação de tal concepção e apresentar o elo Dança-Educação, diante das contribuições que traz para a formação crítica e para o desenvolvimento integral do ser humano.
A organização deste Caderno apresenta uma área ainda incipiente no Brasil – apesar da luta antiga de pesquisadores e professores da Arte do Movimento, que acreditam e vêem a dança como forma de educar um cidadão –, mas que paulatinamente está conquistando espaço na educação, na academia e, principalmente, nas escolas.
A Dança-Educação é um referencial para as questões que permeiam a educação de nossos tempos, apresenta novos olhares para o ser humano, mostra o quanto ele pode criar, expressar, aprender, socializar e cooperar, se educado também pela dança, deixando para trás a "velha" concepção de que o aluno deve estar sempre sentado, calado, ouvindo o professor.
O texto de Ciane Fernandes apresenta Rudolf Laban, o "pai" da Dança-Educação e seu Sistema de Análise de Movimento. Expõe as fases do desenvolvimento da criança ressaltadas nos fatores de movimento: espaço, peso, tempo e fluência e as possíveis relações com o processo de aprendizagem.
O segundo texto, de Ida Mara Freire, relata o ensino de Dança-Educação em escolas públicas inglesas e a formação do professor especialista, indagando o porquê da criança brasileira não aprender dança na escola. A autora apresenta tanto práticas corporais que possam servir de apoio ao ensino de Dança-Educação, quanto a sua aplicabilidade a pessoas portadoras de deficiências.
O próximo artigo refere-se à proposta de Dança Educativa, que desenvolvo em escolas particulares da cidade de São Paulo, remetendo a questionamentos sobre qual o estilo de dança mais apropriado para o contexto escolar. Saliento a urgência e a necessidade de formação de professores especialistas para atuarem na área.
No último artigo, Marcia Strazzacappa afirma que toda educação é educação do corpo,chamando a atenção para a imobilidade a que a prática escolar sujeita o aluno. Expõe a compreensão que crianças e jovens contemporâneos fazem da dança e, finalmente, ressalta a necessidade, não só do aluno, de vivenciar a dança, mas principalmente por parte do professor, para sentir, perceber e compreender a importância desta atividade na educação.
Ao apresentar este Caderno temático, solicitado pela professora Aparecida Neri de Souza, cujo título é inédito e importantíssimo na área da educação brasileira, faço votos de que o mesmo se torne mais um documento de apoio e reflexão crítica – dentre as pouquíssimas bibliografias existentes em português – sobre o movimento dançante na escola.


Marta Scarpato*


1 Fontanella, F.C. O corpo no limiar da subjetividade. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Educação da Unicamp. Campinas, 1985.
* Coordenadora do Curso de Dança da Faculdade Paulista de Artes (SP), mestra em Educação Física pela Unicamp, pedagoga pela PUC-SP e professora de Dança Educativa no Colégio Assunção e Instituto Madre Mazzarello.
 

Dança-Educação: o corpo e o movimento no espaço do conhecimento
Ida Mara Freire *


RESUMO: O presente artigo tem como objetivo refletir sobre a Dança-Educação, tendo como cenário uma experiência intercultural envolvendo professores e pesquisadores do Brasil e da Inglaterra. Apresentamos a dança como área de conhecimento, comparando o ensino e a formação de professores nos dois países, respectivamente. Explicitamos a relação entre criar, executar e observar como meta para apreciação da dança. Discutimos o uso do vídeo como uma estratégia para ensino de Dança-Educação. Reconhecemos seus espaços de aprendizagem como possibilidades de trocas culturais e resignificação do corpo singular e múltiplo, a partir de abordagens da dança contemporânea.
Palavras-chave: Dança-Educação, Ensino, Corpo diferente.


A Dança-Educação no contexto de uma experiência intercultural
Durante o ano de 1998, participamos de um intercâmbio entre professores brasileiros e ingleses com o intuito de pesquisar as similaridades e diferenças entre o ensino de teatro e áreas afins, como dança e narração de histórias, entre os dois países. Trabalhamos em pares, cada pessoa visitou o país de seu parceiro e observou sua prática relacionada à formação de professores, projetos de pesquisa e extensão universitária.
Na área da dança, a parceria se estabeleceu entre a autora deste trabalho e Linda Rolfe, da Universidade de Exeter, que após suas três semanas no Brasil comenta:
foram muitos os acontecimentos em dança de que atualmente sentia falta, mas o que vi foi totalmente uma revelação para meus olhos ingleses. Isto foi principalmente porque a quantidade de diferentes tipos de dança que eu desfrutei e de que participei abrangia pessoas de todas as idades e de diferentes partes da comunidade florianopolitana. A dança parecia ser uma característica aceitável como estilo de vida de muitas pessoas, se elas dançavam em uma companhia de dança, como os integrantes da Companhia de dança Cena 11, ou como as senhoras da terceira idade, dançando e compartilhando sua apreciação da tradicional dança açoriana, ou, ainda, as crianças envolvidas nas danças africanas em suas comunidades. Verifico que o entusiasmo e a apreciação generalizada de todos aqueles envolvidos em várias atividades de dança é contagiante e leva-me a acreditar que todos os eventos continuarão crescendo e desenvolvendo no Brasil. (Freire e Rolfe, 1999)
Concordando com as afirmações de Linda, percebemos claramente a influência da dança na formação sociocultural do nosso povo. Durante sua visita ao Brasil, tivemos a oportunidade de discutir o desenvolvimento da dança em nossas respectivas sociedades, buscando similaridades e diferenças. Uma inquietante pergunta que nos veio a mente foi porque as nossas crianças não aprendem dança em suas escolas. Uma vez que a dança é algo tão natural em nosso país, por que não aproveitá-la para desenvolver o potencial da criança e também do professor?
O ensino da dança no Brasil até uma década atrás dava-se em locais privilegiados como academias e escolas de dança, em sua maior parte de caráter privado. Também ocorria em espaços públicos como centros culturais, associações de bairros, e/ou em situações informais da comunidade e em espaços especiais como as escolas de samba. A formação do professor dá-se através de cursos nas escolas e academias de dança e, principalmente, nos cursos de graduação e pós-graduação de Dança, Educação Física e Artes e, mais recentemente, podemos perceber o crescimento de novos cursos de dança sendo oferecidos no contexto universitário.
Na Inglaterra, cada professor de escola primária (5-11 anos de idade) tem em sua classe 30 crianças de idades semelhantes, para as quais ele ensina das 9h da manhã às 3h30 da tarde, de segunda a sexta-feira. Os professores são requisitados a ensinar-lhes todos os assuntos que fazem parte do Currículo Nacional que tem sido imposto pelo governo. No total das dez disciplinas, tais como matemática, ciência e inglês, está a educação física, que inclui a dança. Nas escolas secundárias, para alunos de 11 a 18 anos de idade, dança também é parte do currículo, mas não é compulsória. Em algumas escolas, ensinar dança pode ser uma importante atividade e, em outras, pode ser apenas mais uma entre outras atividades (Freire e Rolfe, 1999).
O ensino da dança pode ser ministrado através do especialista em educação física ou por um professor graduado em Dança-Educação. Os estudantes cursam a graduação em quatro anos, especializando-se em Educação Física e são treinados para trabalhar com crianças e jovens de 11 a 18 anos de idade. Eles fazem um curso de dança, com duração de somente 20 horas no segundo ano e 20 horas no terceiro ano. Muitos deles, quando graduados, podem trabalhar nas escolas e ser requisitados para ensinar dança, como também ginástica, natação, atletismo e atividades ao ar livre. Existe a possibilidade de os alunos fazerem exames, provas, como fariam em qualquer outra disciplina em sua escola. É possível avaliar a dança a partir da apresentação de um planejamento apropriado, objetivos e critérios bem definidos, de modo tal que o trabalho de dança apresenta-se de maneira graduada. Os critérios poderiam ser pautados nas habilidades de composição, performance, apreciação, conhecimento e demonstração de compreensão, que servem para dançarinos de qualquer idade. Estes deverão ser explicitados para os aprendizes, de modo que eles saibam em que aspectos estão sendo avaliados em seu trabalho de dança. Um outro ponto importante referente à avaliação é que os elementos artísticos da dança são passíveis de ser julgados objetivamente. No entanto, a área mais difícil é a do desenvolvimento estético. A dança contribui para a educação estética da criança e do jovem; a sua influência sobre os sentimentos e emoções é também um aspecto complexo de se avaliar (Freire e Rolfe, 1999).
Em grupos de qualquer idade, o ensino da dança ministrado pelo professor segue uma teoria de ensino muito similar que forma a base para todas as danças educacionais. Tal teoria tem sido desenvolvida durante muitos anos, e isso acontece na Inglaterra da mesma forma como no ensino de outras disciplinas como arte, teatro e música. Durante os últimos 25 anos, a dança tem sofrido algumas mudanças, de modo que poderia ser descrita numa abrangência que a conceitua como um movimento criativo até chegar a entendê-la como uma manifestação de experiências mais estruturadas, por meio das quais as crianças podem aprender e entender a dança como uma forma de arte em todos os seus contextos culturais. Dentro do Currículo Nacional, que foi introduzido na Inglaterra, em 1988, a dança aparece como um aspecto distinto do Programa de Educação Física. É reconhecida como uma arte de execução, que é caraterizada pela intenção e habilidade para usar o movimento simbolicamente, a fim de criar significado. Paralelamente às outras artes, a dança desenvolve uma extensa área da capacidade intelectual, que proporciona às crianças um modo especial de usar sua imaginação para explorar suas experiências no mundo, dando-lhes sentido (Freire e Rolfe, 1999).

Observando o ensino da dança em escolas públicas na Inglaterra
Como professoras do curso de Pedagogia no Brasil, ficamos entusiasmadas em saber que a dança, assim como o teatro, era parte do currículo dos estudantes da Faculdade de Educação em Exeter, Inglaterra. Por três semanas, em junho de 1998, tivemos a oportunidade de conhecer, na prática, desde o ensino da dança em cursos universitários voltados à formação de professores, até o cotidiano de ensino da dança para crianças com idade de a partir de 5 anos nas escolas publicas na região de Devon. No decorrer das visitas às escolas, percebemos que tínhamos material para análise, proveniente tanto do professor como da criança, já que era notável saber que, se estávamos falando em dança e em educação, o conteúdo era um fator relevante, tanto para quem ensinava quanto para quem era ensinado.
Neste sentido, ao ensinarmos dança em cursos de formação de professores de séries iniciais, o conteúdo pode ser diferente daquele que ensinaríamos para formar professores de dança, nas faculdades de Arte e de Educação Física. Nesse caso, a preocupação nossa não seria ensinar dança moderna, ballet clássico, entre outros, mas, sim, ensinar a dança como arte criativa e seu papel no desenvolvimento e aprendizagem da criança como um ser integral. O papel do professor seria o de proporcionar experiências que favorecessem as crianças no desenvolvimento da capacidade de criar.
Indagamos se, no país do carnaval, ensinar dança pode parecer algo muito complexo ou tão fácil que não deve ser levado a sério, a ponto de se caracterizar como conteúdo curricular. Então, o que podemos fazer, já que o swing é algo tão natural? Será que temos de estruturar mais a dança, esquematizar os passos, marchar? Ou vamos aproveitar o molejo da nossa gente e criar belos movimentos?
Em relação ao ensino da dança como uma disciplina no currículo escolar, verificamos que nas escolas públicas da Inglaterra, como explicitam Rolfe e Harlow (1996): o principal objetivo é motivar os estudantes a apreciarem a dança, pautados em três ações: ver, criar e executar. Como é comum também em nosso contexto, as crianças e os jovens brasileiros nem sempre têm a oportunidade de ir a um espetáculo da dança ou assistir a peças de teatro. Conhecendo a importância da arte como resgate cultural, proporcionar aos alunos atividades que possibilitem se apropriar dessas experiências pode ser de significativo valor para seu desenvolvimento.
Rolfe enfatiza como a composição, a perfomance e a observação podem ser apropriadas pelas crianças e/ou pelos estudantes de dança de um modo em geral:
Composição em dança
As crianças precisam desenvolver as habilidades e conhecimentos necessários para criar, modelar e estruturar movimentos em forma de dança expressiva. A criança, muitas vezes, usa os movimentos espontaneamente, variando seus gestos e dinâmicas para expressar seus sentimentos e idéias. Com um pouco de encorajamento e assistência, elas brincarão e improvisarão com esses padrões básicos de movimento. Este é um dos objetivos da Dança-Educação nos anos iniciais para promover e desenvolver todas as suas habilidades naturais, ou seja, oferecer oportunidades para as crianças criarem simples seqüências, através da improvisação, interagindo uma com a outra, orientadas por um professor sensível. Com suas habilidades e conhecimentos desenvolvidos, elas poderão ser capazes de criar danças mais complexas, as quais terão uma estrutura clara, incluindo aspectos interessantes de composição, tal como desenvolvimento de tema e repetição.
Execução da dança
Sendo uma arte de execução, como a música e o teatro, a dança pode ser apresentada para uma audiência, por mais informal que possa ser. A performance proporciona aos dançarinos a oportunidade de avaliar a eficácia da dança que eles compuseram, aprenderam e compartilharam com outras crianças ou outro grupo. As crianças poderão ser encorajadas a reconhecer suas performances, tanto como realização pessoal como uma apresentação para uma audiência.
As crianças pequenas possuem um repertório de movimentos naturais e habilidades expressivas. Muitas adquiriram um sentido elementar de consciência estética do movimento, fazendo-o conscientemente, mas com prazer e com consciência da fluência e do ritmo. Nesses anos iniciais, esse deleite e satisfação em expressar-se através de movimentos devem ser aproveitados como oportunidades de aprendizagem designadas para desafiar e desenvolver todo esse potencial. A aquisição e o domínio de habilidades são essenciais para capacitar as crianças a se movimentarem com facilidade e precisão, auxiliando-as a expressar sua individualidade em situações mais imaginativas. Inicialmente, o foco poderia ser a melhoria do equilíbrio, do controle, coordenação e postura, período em que as caraterísticas de dinâmica espacial do movimento necessitam ser constantemente enfatizadas. Uma introdução sobre específicos estilos de dança social, teatral e tradicional poderá ser desenvolvida conforme a sua faixa de competência para realizar diferentes estilos e técnicas e danças. Conforme progridam na escola, terão muitas oportunidades de trabalhar com professores especialistas ou dançarinos profissionais.
Observando a dança
Ao começar um programa de dança, as crianças poderão ser encorajadas a observar o trabalho corporal um do outro e, em seguida, tecer seus comentários. Observar a dança tanto durante o processo criativo como o produto final é um aspecto integral para as crianças apreciarem e entenderem a dança. As crianças precisam estar conscientes de que a dança é um meio de expressão e comunicação. Através da regular observação e discussão do trabalho em sala de aula e da dança profissional, quando possível, elas gradualmente podem reconhecer a linguagem da dança. Também necessitam estar preparadas para serem capazes de olhar e ouvir perceptivelmente e com imaginação, assim como interpretar e avaliar a dança atentando para as caraterísticas específicas do trabalho. O professor, em algumas situações, poderá guiar e focalizar o olhar das crianças de modo a desenvolver suas habilidades para a crítica e para o conteúdo. Isto encorajará sua opinião e interpretação pessoal, como também enriquecerá seu conhecimento de dança. (Freire e Rolfe, 1999)
Durante a participação em um seminário sobre dança que ocorreu em Salvador (Bahia), Linda Rolfe respondeu algumas perguntas feitas por alunos do curso da Faculdade de Dança. Destacamos, entre estas, a questão sobre a relação entre o movimento improvisado e a habilidade técnica do movimento no ensino da dança. Para Rolfe:
Este é um vasto assunto para ser discutido; tentarei apresentar os pontos principais. Um deles diz respeito que a habilidade técnica do movimento é básica ou essencial para qualquer dançarino. Entre esses pontos incluo, ainda, a habilidade de se mover com coordenação, ritmo, postura, equilíbrio, controle e muitos outros. Esses aspectos são comuns para todas as técnicas ou estilos de dança e promove o treinamento do movimento, que é fundamental para todos os bailarinos. Para desenvolver estas habilidades de dança, o jovem também necessita adquirir outras habilidades que lhe permitam fazer um movimento com criatividade, ser capaz de improvisar e explorar novas formas de mover-se com destreza, bem como expressar suas idéias e sentimentos. O equilíbrio entre desenvolver movimentos com criatividade e com habilidade técnica deve ser buscado e constantemente considerado. Em algumas aulas, o foco pode deter-se mais em um que em outro, mas cada um deles é importante e em vários aspectos são inter-relacionados no ensino da dança. (Idem, 1999)

O uso do vídeo como uma estratégia para ensino de Dança-Educação
O vídeo é um recurso didático para o ensino e aprendizagem da dança que pode ser utilizado por qualquer professor, ou seja, professores sem formação específica na área de dança. Exemplificamos como que o uso de vídeos de dança profissional tem uma aplicação no ensino da dança.
O seu uso sobre um trabalho de dança profissional tem uma ampla aplicação no ensino de dança. No entanto, o que nos interessa focalizar é como isso pode ser usado, isto é, não como algo para se copiar, mas para as crianças terem novas idéias de movimentos. Durante a exibição de um vídeo, por exemplo, podemos identificar muitos tipos de saltos em dança, e isso poderia ser observado e discutido, abrindo novas possibilidades de saltar em diferentes formas, algumas das quais não poderiam ser imaginadas sem ter o vídeo como ponto de partida. As crianças poderiam ser encorajadas a tentar realizar o movimento para si mesmas, adaptá-lo e refiná-lo, de modo que ampliassem seu próprio vocabulário de movimentos (idem, 1999).
No desenvolvimento do ensino da dança, o material básico de suporte é o vídeo. Para mostrar como se dança samba e capoeira no Brasil, por exemplo, é uma fonte de ensino maravilhosa para o professor e os alunos ingleses, comenta Linda. Como verificamos em sala de aula, esse material capacitava seus alunos para observarem e discutirem os estilos da dança e conhecerem mais sobre o contexto em que essas manifestações culturais podem ser encontradas. Através do estudo de algumas partes selecionadas do vídeo os estudantes foram capazes de:
· Identificar os movimentos presentes no samba e na capoeira, por exemplo: quais sãos as ações, eles se movem rápido ou lento? Os movimentos são amplos ou restritos, e como é usado o espaço para dançar? Em quais níveis e direções?
· Descrever as caraterísticas e estilos de cada dança;
· descobrir sobre as tradições e origens do samba e da capoeira, o que foi ouvido por meio do vídeo, comentando e discutindo as informações;
· copiar algumas ações e padrões rítmicos do movimento observados e colocar em suas próprias coreografias;
· usar a imaginação para adaptar e/ou alterar os movimentos observados, como também manter as caraterísticas dos respectivos estilos de dança;
· apreciar as similaridades e diferenças entre os movimentos de samba e capoeira;
· apreciar o tipo de música e dos instrumentos usados para dançar samba e acompanhar a capoeira.
O vídeo selecionado para trabalhar com os estudantes mostrou os modos informais de dançar samba e capoeira na comunidade brasileira. Usar vídeos de companhias de dança pode demonstrar exemplos de excelência que teríamos de nos empenhar muito para realizar. No entanto, eles servem como modelo, estimulando-nos a elevar o padrão e a qualidade da dança em educação. Vale ressaltar que o vídeo é um item relevante no trabalho prático com crianças ou estudantes e ele não deve ser apresentado de modo isolado no processo atual do ensino da dança, mas de maneira que promova a efetiva inter-relação de teoria e prática.

Dança: movimentos para que corpo?
Um dos aspectos que essa experiência demonstrou para nós diz respeito aos espaços de aprendizagem, trocas culturais e ressignificação do corpo singular e múltiplo que a Dança-Educação pode nos proporcionar. Destacaremos a seguir como algumas abordagens da dança educação, assim como da dança contemporânea podem contribuir para o trabalho que respeite a diversidade humana. Faremos menção aos trabalhos e pesquisas que estamos desenvolvendo, que colocam em pauta a indagação acima apresentada.
A inclusão de pessoas categorizadas como portadoras de deficiências em seu contexto sociocultural tem possibilitado à sociedade abrir novas portas para que todas as pessoas possam usufruir dos bens culturalmente produzidos. O campo das Artes tem se apresentado como uma dessas portas. Verificamos várias tentativas de trabalhos nas áreas plásticas, dramática e na dança, sendo propostos com o objetivo de integrar essas pessoas em sua comunidade. No entanto, quando analisamos alguns desses trabalhos que vêm sendo divulgados pela mídia, começamos a nos perguntar para que e para quem serve esse tipo de trabalho (Freire, 1999). Nesse sentido, procuraremos apresentar aqui a nossa contribuição sobre essas e outras questões que gravitam em torno do tema: a dança e o corpo diferente.
Quando falamos em dança, cada um de nós pode pensar em vários tipos de dança, por exemplo: dança de salão, samba, forró, pagode, do "tchan", jazz, sapateado, balé clássico, afro, moderno, contemporâneo, entre outros. Quando nos referimos à dança para pessoas cujo corpo apresenta uma deficiência, a primeira idéia que talvez passe pela nossa cabeça é a dança terapêutica, ou a dança expressiva ou livre, usada geralmente para se "soltar". Mas, perguntamos: será que o corpo diferente está destinado a dançar só certos tipos de dança? Será que, por detrás da dança livre, não se esconde o fato de não termos formação adequada para ensinar dança para essas pessoas, ou, ainda, a nossa falta de convicção de que esse corpo com tantas limitações possa realmente dançar? (Freire, 1999)
Uma análise sobre a pessoa categorizada como deficiente no contexto da dança é apresentada por Ann Cooper Albright. A autora elabora paulatinamente sua crítica embasada no que ela própria atesta: a desorganização do real que a deficiência simboliza pode nos levar a pensar de maneira diferente sobre a relação entre representação e história atual do corpo. A questão da deficiência está associada com o masculino e o feminino, com as noções de representação de belo e grotesco, saúde e doença, alienação e comunidade, autonomia e interdependência (Albright, 1997 p. 75).
O mundo da dança, até pouco tempo atrás, era um território só para os corpos perfeitos, "perfeitos" tanto no que se refere à ausência de deficiência física, quanto aqueles corpos definidos a partir do padrão exigido pelo balé clássico. Versando entre o comentário de Théophile Gautier (1838), a respeito do corpo perfeito da romântica bailarina Marie Taglione, e o de Steve Paxton, descrevendo Emery Blackwell na década atual, Albright (1997) atenta para os trabalhos na dança contemporânea que estão revendo o paradigma tradicional, perguntando-se que tipo de movimento pode constituir a dança e que tipo de corpo pode constituir um dançarino. E é nesse contexto que o corpo diferente tem-se apresentado e novas propostas de trabalho vêm sendo elaboradas de modo a explorar e respeitar cada corpo.
Considerando que a deficiência significa a antítese cultural do corpo saudável e apto, o que acontece quando uma pessoa com deficiência apresenta-se no papel de dançarino? É preciso aqui ressaltar que é esse papel que vem sendo historicamente reservado para a glorificação de um corpo ideal. Pode a integração de corpos deficientes na dança contemporânea resultar de uma ruptura com as pré-concepções das habilidades sobre o profissional da dança? Ou será, ainda, que o corpo deficiente "transcende" sua deficiência para tornar-se um dançarino? O que está em jogo nessas questões não é meramente uma definição física do corpo do dançarino, mas a ampla estrutura (metafísica) da dança como forma de representação (Albright, 1997, p. 58).
A relação da dança com a deficiência é um extraordinário campo, por meio do qual podem ser exploradas as construções sobrepostas da habilidade física do corpo, subjetividade e visibilidade cultural. Um modo de examinar as pré-concepções das habilidades do mundo da dança profissional é confrontar tanto os significados simbólicos e ideológicos que o corpo deficiente detém em nossa cultura como também as condições práticas da deficiência. Uma vez mais, estamos numa posição de negociar entre a representação teatral do corpo dançante e a atualidade de suas experiências físicas. Assistir a um corpo deficiente dançando nos força a ver com uma dupla visão e ajuda-nos a reconhecer que, enquanto uma perfomance de dança é calcada nas capacidades físicas de um dançarino, essa não é limitada por ele (Albright, 1997, p. 58).
Para Albright (op. cit., p. 63-75), as questões da deficiência eventualmente afetam a nossa vida. Embora possa ser familiar para nós que algumas pessoas com deficiência, explica a autora, sejam escritoras, artistas ou músicos, os dançarinos com deficiência ainda são vistos em termos de contradição. Isto porque a dança distingue-se de outras formas de produção cultural como um livro ou uma pintura, fazendo o corpo visível com a representação de si mesmo. De modo que, quando olhamos a dança, observamos tanto a coreografia quanta a deficiência. A inserção de corpos com desafios físicos reais pode ser constrangedor tanto para a crítica como para a audiência que estão comprometidas com a estética de beleza ideal. De algum modo, a deficiência simboliza uma tentativa de nos relembrar como é tênue o modelo do "mito do corpo perfeito". Albright acredita que essa dissolução do real que a deficiência pode provocar nos conduz a pensar diferentemente sobre a relação entre a representação e a atual história do corpo.
Ainda conforme Albright, algumas companhias de dança contemporânea como "Candoco and Light motion" estão produzindo trabalhos que não disfarçam a deficiência, pelo contrário, usam a diferença na habilidade física para criar coreografias novas e inventivas. Embora diferentemente incorporadas, as concepções culturais de graça, velocidade, força, agilidade e controle ainda estruturam a estética dessas companhias. Albright finaliza o texto apresentando o Contact-Improvisation como uma possibilidade de movimento para outros tipos de danças e para outros tipos de corpos. O Contact-Improvisation representa o corpo com deficiência de um modo diferente no mundo da dança, porque, explica Albright, esse não tenta recriar a moldura estética do corpo clássico ou o contexto de uma dança tradicional (Albright, op. cit., p. 83-90).
O texto de Albright está nos ensinando a ver a complexidade do corpo diferente. Analisar a questão da deficiência e relacioná-la com a questão de gênero e discuti-la com base nas noções de representação de belo e grotesco, saúde e doença, alienação e comunidade, autonomia e interdependência, foi algo que nos proporcionou muitas informações. A seguir, apresentaremos como algumas propostas da dança contemporânea contribui para revisão de alguns paradigmas, como sugere a autora, o que nos facultaria reconhecer outras formas de apreciar a dança que não passariam somente por aquilo que é agradável apenas aos olhos. A dança para um corpo diferente estaria nos propondo um conhecimento mais amplo do conceito de beleza e ao mesmo tempo o desafio de apreendermos uma estética da própria existência.

Rudolf Laban: o movimento como experiência de vida
Introduziremos esse item citando um trecho do livro de Laban, possibilitando que este fale por si só acerca da relação entre arte e ciência.
É essencial àqueles que estudam o movimento no palco cultivarem a faculdade de observação, o que é de muito mais fácil consecução do que geralmente se acredita. Os atores, bailarinos e professores de dança usualmente possuem tal capacidade como dom natural, a qual, no entanto, pode ser refinada a tal ponto que se torne inestimável para os objetivos da representação artística. É obvio que o procedimento do artista ao observar e analisar o movimento e depois ao aplicar seu conhecimento difere em vários aspectos do procedimento do cientista. Mas é muitíssimo desejável que se dê uma síntese das observações artística e científica do movimento já que, de outro modo, a pesquisa sobre o movimento do artista tende a especializar-se tanto numa só direção quanto a do cientista em outra. Somente quando o cientista aprender com o artista o modo de adquirir a necessária sensibilidade para o significado do movimento, e quando o artista aprender com o cientista como organizar sua própria percepção visionária do significado interno no movimento, é que haverá condições de ser criado um todo equilibrado. (Laban, 1978, p. 154)
Interessante como Laban busca em sua obra vincular a ciência e a arte, e faz isso com muita propriedade, por meio do seu procedimento de análise e observação do movimento. Concordamos plenamente com ele sobre a necessidade tanto do saber como do aprender do artista e do cientista e a contribuição que cada um pode oferecer ao outro, com vistas à construção de um conhecimento, tal como ele sugere: "um todo equilibrado". Nosso trabalho tenta, por meio da educação, fazer essa aproximação. Vejamos como alguns estudos estão aplicando seus referencias teóricos e metodológicos.
A contribuição de Laban na área da educação pode ser evidenciada nos trabalhos de duas de suas discípulas, Marion North e Veronica Sherborne. Buscando esclarecer a origem da aplicação da dança e do movimento como proposta educativa e terapêutica, North (1990) explicita que esse trabalho se pauta na Arte, ou seja, em um processo simbólico, sistemático e elaborado, contrariando aquelas propostas denominadas de "liberdade de expressão". Esse é um aspecto muito importante e acreditamos que o trabalho com essa população deve ser estruturado, de qualidade, e que possibilite avaliar os benefícios. Nesse sentido, o uso da análise do movimento proposto por Laban, explica Sherborne (1995), proporciona a estrutura que o professor necessita para entender o que deve ser observado no movimento humano. Como resultado desta observação, o professor pode decidir o que deve ser ensinado.
A análise de movimento de Laban consiste num sistema de estudo que reconhece o movimento como nossa primeira linguagem. Essa análise proporciona um meio através de símbolos e uma terminologia padronizada, para definir e identificar os aspectos efêmeros da linguagem não verbal. Tal sistema define quatro aspectos do movimento que são interrelacionados – corpo, esforço, espaço e relações – e que servem como lentes pelas quais se observa e se apura o foco da experiência do movimento (Scott, 1996 e North, 1990).
A observação e a análise do movimento de Laban (North, 1990 e Sherborne, 1995), pautadas nos quatro aspectos acima mencionados, podem ser assim explicitadas:
I) O corpo: Que parte do corpo se move? – Fluência centrípeta/centrífuga ou... uso do corpo de maneira ampla ou restrita ou ampla; consciência de qual parte do corpo está se movendo; unidade entre as partes superiores e inferiores do corpo; unidade entre o centro e as extremidades do corpo; movimentos do tronco iniciados em diferentes partes; formas do corpo e destreza manual.
II) A qualidade ou "esforço": Como o corpo se move? – Frases: habilidades rítmicas, movimento mecânico ou métrico; resistência; reações imediatas ou demoradas; frases crescentes e decrescentes. Elementos do movimento: 1. atitude da pessoa frente ao peso do seu corpo; 2. atitude da pessoa frente ao tempo; 3. atitude da pessoa frente à fluência do movimento; 4. atitude da pessoa frente ao espaço. habilidade para alternar entre atitudes opostas;
Combinações de três elementos apresentados ao mesmo tempo: (a) peso, tempo e fluência; (b) peso, espaço e fluência; (c) espaço, tempo e fluência;
Combinações de dois elementos apresentados ao mesmo tempo: (1) fluência/tempo; (2) peso/fluência; (3) peso/tempo; (4) peso/espaço; (5) tempo/ espaço; (6) espaço/fluência;
III) O espaço: Onde o corpo se move? – Gestos (shaping); localização das formas; planos do movimento; níveis do espaço que são utilizados pelo indivíduo.
IV) Relações: Com o que ou quem o corpo se move? – Relações da pessoa em movimento com objetos ou com outros indivíduos são notadas em associação com um particular movimento que está sendo observado.
A contribuição de Laban para este trabalho diz respeito ao modo premente com que ele apresenta a educação no contexto dança. O autor considera o movimento como um aspecto central tanto para a educação, em geral, quanto para a educação por meio da Arte, em particular (Preston-Dunlop, 1998). Em sua obra intitulada Dança educativa moderna, Laban (1978) apresenta o contexto e as características dessa nova técnica, escrevendo:
La nueva técnica de la danza, que estimula el dominio del movimiento en todos sus aspectos corporales y mentales, se aplica en la danza moderna como una nueva forma de danza escénica y de danza social. El valor educacional de esta nueva técnica puede atribuirse en gran medida a la universalidade de las formas de movimiento que se estudian y dominan en el aspecto contemporáneo de este arte.
(...) La riqueza de movimento en la danza moderna exige un enfoque diferente de su maestría. Es, en realidad, imposible abarcar en su conjunto el flujo del movimiento humano, estudiar las variaciones casi infinitas de los paso y el porte del cuerpo de la misma manera que se puede hacer com el restringido número de movimientos utilizados en las formas estilizadas de danza. En lugar de estudiar cada movimiento particular, se puede compreender y practicar el principio del movimiento. Este enfoque de la materia de la danza implica una nueva concepción de ésta, es decir del movimiento y sus elementos. (Op. cit., p. 20)

A aplicação da dança educativa moderna no contexto escolar é assim dimensionada pelo autor:
(...) El instrumento esencial que se puede ofrecer al educador en la danza moderna es la perspectiva universal sobre los principios del movimiento. El uso práctico de la nueva técnica de la danza en la educación es múltiple. El impulso innato de los ninos a relizar movimientos similares a los de la danza es una forma inconsciente de descarga y ejercitación que los introduce en el mundo del flujo del movimiento y robustece sus facultades espontáneas de expresión. La primeira tarea de la escuela es alentar y concetrar este impulso, y hacer que los ninos de grupos de mayor edade tomen consciencia de algunos de los principios que gobiernan el movimiento.
La segunda tarea es fomentar le expresión artística en el ámbito del arte primario del movimiento, en dondo há de perseguirse dos objetivos: Uno es ayudar a la expresión creativa de los niños representando danzas adecuadas a sus dones naturales y a la etapa de su desarrolo. El outro es alentar la capacidad de tomar parte en la unidade superior de las danzas colectivas dirigidas por el maestro. Una tarea adicional en el despertar de una amplia perspectiva de las actividades humanas consiste en observar el flujo de movimento que en ellas se emplea.(Idem, p. 22)
Esse e outros aspectos são aprofundados no estudo de Marques (1999), quando essa propõe um olhar contemporâneo nas propostas educacionais de Laban. Ao aduzir que "todacriança/adolescente tem o direito de dançar" como um dos princípios da "dança criativa" ou "Dança-Educação", a autora explicita que, por trás dessa afirmação, está a justificativa da inclusão da dança como disciplina obrigatória nos currículos escolares. Não mais para os "eleitos", pertencentes a uma elite (referência de muitos autores ao ensino do balé clássico), a "dança criativa" seria para todos, por direito humano. Explica a autora que:
Um dos argumentos principais que embasam estes princípios comuns da "dança criativa" é a afirmação implícita ou explícita da universalidade de movimento: como seres humanos, todos teríamos a capacidade biológica de mover nossos corpos e expressarmos criativamente nossos sentimentos e idéias através deles. Um dos expoentes máximos dessa afirmação foi sem dúvida Laban que, tendo desenvolvido seu trabalho educacional na Inglaterra da primeira metade do século, foi amplamente divulgado em praticamente todo o mundo ocidental. O discurso educacional de Laban está enraizado tanto na filosofia da dança moderna do início do século quanto na idéias da Escola Nova difundidas por John Dewey na Inglaterra. Para essa escola, os ideais de expressão interior e emoção humana são entendidos como os princípios edificantes da criação artística/educacional.
A aplicação dos estudos de Laban em nosso contexto atual não deve ser feita de modo ingênuo, recomenda a autora: "As discussões contemporâneas em torno do corpo como objeto de estudo obriga-nos a repensar conceitos de dança e de educação praticamente inquestionáveis na época de Laban."
Marques indaga:
a naturalidade, a espontaneidade, a totalidade e capacidade de auto-tudo, sugeridas como essenciais e objetivos primeiros da "dança criativa" não se distanciam muito tanto como possibilidades educacionais quanto um ideal a ser perseguido na contemporaneidade. Ou ainda, (...) se hoje as propostas educacionais de Laban seriam ainda – se algum dia foram – apropriadas aqualquer cultura, classe social, raça, etnia gênero e, principalmente, aos diversos corpos/movimento existentes e construídos em/por nossas sociedades. Seu trabalho, na realidade, poderia se entendido hoje, propõe a autora: "como umadas múltiplas vozes do mundo da dança e da educação." Portanto, alerta ela: "não representaria a base fundadora dos princípios educacionais para dança criativa da criança e do adolescente, mas uma possibilidade de desenvolver trabalhos e análises de dança que sejam também educacionais."
Se por um lado a ausência de alicerces fundadores unificadores para o ensino da dança permite que trabalhemos com a diversidade e a multiplicidade de corpos em movimento de/em nossas sociedade, por outro, também poderia estar colocando em xeque uma ação social emancipadora e a crença nas possibilidades transformadoras da educação; pois não garante, por exemplo, uma das premissas básicas da "dança criativa", também contida no trabalho de Laban, de que "todacriança/adolescente tem direito de dança". A meu ver esta questão postula a necessidade de liberdade, justiça e igualdade social para que todos os cidadãos possam ter acesso à educação/dança. (1999, p. 89)
Esses argumentos indicam a necessidade de estarmos atentos aos nossos referenciais teórico-metodológicos. Observamos e, analisando os nossos próprios corpos em movimento e de nossos sujeitos, ora diferentes, ora deficientes, indagamos, primeiramente, porque esse corpo não pode dançar; após experimentarmos outros movimentos, redefinimos nossa pergunta em: que movimento é esse que tal corpo pode dançar. Dentro desse contexto, apresentamos a seguir outros sistemas, a saber: Body-Mind-Centering e Contact-Improvisation, que, como o de Laban, são aqui aduzidos como uma possibilidade.

Body-Mind Centering: a relação entre o conhecimento e o sensível
O outro sistema que buscamos para fundamentar o trabalho de Dança-Educação intitula-seBody-Mind Centering, definido por Cohen (1997) como uma jornada experiencial dentro do vivo e cambiante território do corpo. O explorador é a mente, nossos pensamentos, sentimentos, alma e espirito. Através dessa jornada, caminhamos para o entendimento de como a mente é expressa por meio do corpo em movimento.
Nosso corpo, explica Cohen (op. cit, p. 1), move-se como nossa mente se move. As qualidades de qualquer movimento são as manifestações de como a mente é expressa através do corpo que está em movimento. As mudanças nas qualidades do movimento indicam que a mente mudou o foco sobre o corpo. Ao contrário, quando dirigimos nossa mente ou a atenção para diferentes áreas do corpo e iniciamos o movimento a partir dessas áreas, mudamos a qualidade do nosso movimento. Então, achamos que o movimento pode ser um modo de observarmos a expressão da mente por meio do corpo; isso também pode ser uma maneira de produzir mudanças na relação mente-corpo.
O estudo Body-Mind Centering inclui a aprendizagem tanto experiencial como cognitiva dos sistemas do corpo humano como, por exemplo, esqueleto, ligamentos, músculos, nervos, gordura, pele, órgãos, glândulas endócrinas, fluidos, respiração e vocalização; os sentidos e a dinâmica da percepção e o desenvolvimento do movimento tanto ontogenético como filogenético; a arte do tocar e a responsividade. Os fundamentos dessa técnica estão alicerçados nos vinte anos de experiências de Bonnie Bainbridge Cohen e seus colaboradores e têm sido aplicados por pessoas de diferentes áreas, como dança, atletismo, trabalho corporal, educação física, terapias da fala, do movimento, ocupacional, psicoterapia, medicina, desenvolvimento infantil, educação, arte visual e musical, yoga, artes marciais, meditação e outras disciplinas, envolvendo corpo-mente, assegura a autora (1997, p. 2).
A seguir, apresentaremos sinteticamente como se estrutura o Body-Mind Centering. Primeiramente, descreveremos os sistemas do corpo. Cohen elege dez sistemas no corpo humano, a saber: 1. Sistema esquelético: formado por ossos e juntas, oferece ao nosso corpo a forma básica por meio da qual podemos nos locomover no espaço. Por esse meio, a mente também se organiza, promovendo suporte para nossos pensamentos. 2. Sistema de ligamentos: os ligamentos mantêm os ossos unidos, guiam a reposta muscular e suspendem os órgãos nas cavidades torácica e abdominal. Esse sistema proporciona claridade e eficiência para o alinhamento e movimento dos ossos e órgãos. 3. Sistema muscular: os músculos estabelecem uma rede tridimensional para o suporte equilibrado de movimento da estrutura esquelética, proporcionando a força elástica que possibilita a mudança dos ossos pelo espaço. Por meio desse sistema, incorporamos nossa vitalidade, expressamos nosso poder e nos engajamos num diálogo de resistência e resolução. 4. Sistema orgânico: os órgãos mantêm as funções de nossa sobrevivência interna – respiração, nutrição e alimentação. Além disso, nos proporcionam o senso de volume, saciação e autenticidade orgânica. São também os habitats primários ou ambientes naturais das nossas emoções, aspirações e as memórias de nossas reações internas para nossas histórias pessoais. 5. Sistema endócrino: a secreção produzida pela glândula endócrina passa diretamente pela corrente sangüínea e seu equilíbrio ou desequilíbrio influencia todas as células do corpo. Isso se caracteriza em um sistema de silêncio interior, ondas ou explosões de caos/equilíbrio e a cristalização de energia dentro da experiência arquetípica. 6. Sistema nervoso: alinhados com o sistema endócrino, os nervos recebem e passam informações para todas as células do corpo, coordenam essas informações em controle específico ou em centros de retransmissão por todo corpo, pela coluna vertebral e pelo cérebro. 7. Sistema de fluidos: os fluidos são os celulares, sangüíneos, linfático, sinovial e cérebroespinhal. Esse sistema medeia a dinâmica da fluência entre descanso e atividade. 8. Sistema Facial: por meio desse sistema conectamos nossos sentimentos internos com nossa expressão externa. 9. Sistema gorduroso: a gordura estática é armazenada como potencial desconhecido ou represado e cria um senso de peso e letargia. A gordura que é mobilizada expressa força, poder primordial e um senso de graça e fluidez.10. Sistema dérmico: por meio da pele, tocamos e somos tocados pelo mundo exterior, somos invadidos e protegidos, fazemos contatos e somos contatados pelos outros. Cohen argumenta que, embora cada sistema apresente separadamente suas próprias contribuições para o movimento do corpo-mente, eles são todos interdependentes, juntos proporcionam uma completa rede de apoio e expressão.
desenvolvimento do movimento é outro aspecto relevante no sistema Body-Mind Centering, que é trabalhado por Cohen (op. cit., p. 4), tanto em termos filogenéticos como ontogenéticos. O desenvolvimento, explicita a autora, não é um processo linear, mas ocorre através de ondas sobrepostas, com estágios, contendo elementos de todos os outros. Em virtude de cada estágio estabelecer e apoiar o seu sucessivo, qualquer salto, interrupção ou falha para completar o estágio de desenvolvimento pode levar a problemas no movimento e alinhamento na percepção, seqüência, organização, memória e criatividade. O desenvolvimento material inclui reflexos positivos, reações ajustadas e equilibradas e o padrão neurológico básico que é pautado por padrões de movimentos pré-vertebrados e vertebrados. O primeiro dos quatro padrões pré-vertebrados é a respiração celular, seguido da irradiação umbilical para a boca e movimento pré-espinhal. Os doze padrões de movimentos vertebrados são baseados nos movimentos: espinhal, homólogo, homolateral e contralateral.
As dinâmicas da percepção: é por meio de nossos sentidos que recebemos informação do ambiente interno e externo. Como filtramos, modificamos, distorcemos, rejeitamos e aceitamos esta informação é parte do ato de perceber. Tocar e movimentar são as primeiras ações para nos desenvolvermos. Elas estabelecem a linha de base para a percepção futura por meio do olfato, gustação, audição e visão. Pela exploração do processo perceptivo, podemos expandir nossas escolhas para responder a nós mesmos, aos outros e ao mundo no qual vivemos (idem, p. 6).
respiração e a vocalização: nossa respiração é influenciada pelo nosso estado fisiológico e psicológico e por fatores externos do nosso ambiente. A maneira pela qual respiramos também influencia nosso comportamento e funcionamento físico. No que diz respeito a nossa voz, por meios de suas qualidades expressivas comunicamos para o mundo exterior quem nós somos. Nossa voz reflete o funcionamento de todos os sistemas do nosso corpo e o processo de integração do nosso desenvolvimento (Idem).
arte de tocar e ser responsivo: quando tocamos alguém, somos tocados igualmente. Isto é uma exploração da comunicação por meio do toque – a transmissão e a aceitação da fluência de energia dentro de nós mesmos e entre nós mesmos e os outros (idem) .
O trabalho de Cohen pode ser de bom proveito para o ensino da Dança-Educação, ao possibilitar aos estudantes um conhecimento tanto cognitivo como experiencial do próprio corpo. Veremos no próximo item como esse sistema tem sido aplicado em outras abordagens da dança contemporânea.

Contact-Improvisation: o outro como reconhecimento de si
Em nosso trabalho, temos experimentado o Contact-Improvisation. Tendo o Body-Mind Centering como um de seus sustentáculos, esse sistema tem sido apreendido por companhias, escolas e grupos que possuem como integrantes pessoas categorizadas como portadoras de deficiência (Kalterbruner, 1998, p. 32). Em nosso grupo, especificamente, sua aplicação tem sido profícua, em virtude das caraterísticas abaixo descritas.
Contact-Improvisation, criado por Steve Paxton, é definido como um processo criativo que ocorre quando duas ou mais pessoas se movimentam com apoio mútuo e jogam com a mudança de equilíbrio coletivo. É influenciado por técnicas da dança moderna, por componentes de acrobacia etc., tem seus próprios princípios característicos de movimento. Como se destina à relação entre o esqueleto, a musculatura e os reflexos, o Contact-Improvisation também atenta para as interações do corpo perceptivo com o organismo corpo-mente. Por meio da experiência direta e da percepção da dança, podemos conhecer novos caminhos que nos coloquem em contato com nós mesmos e com o nosso ambiente. Isto é o que poderia ser chamado de aspecto contemplativo.
O ponto principal desse sistema, conforme propõe Steve Paxton, é simplesmente o prazer de nos movimentarmos e o prazer de usar o nosso corpo. É o prazer de dançar com alguém de um modo não planejado e espontaneamente, em que cada pessoa está livre para inventar, uma não estorvando a outra. Esta é uma forma social muito prazerosa, no entender de Paxton (apud Kaltenbruner, 1998, p. 11).
O significado do movimento no Contact-Improvisation é proposto a partir da análise do movimento de Cyntia J. Novack (1990), pautada nos conceitos de Rudolf Laban e Irmgard Bartenieff. A primeira autora sintetiza e organiza as qualidades do movimento valorizadas no Contact-Improvisation da seguinte forma: geração de movimento por meio de pontos mutáveis de contato entre os corpos; sensibilidade através de pele; rolar através do corpo, focalizando o segmento do corpo e movendo-se em diferentes direções simultaneamente; experimentar o movimento a partir do espaço interno; usar o espaço 360º; ir no impulso, enfatizando a fluência e o peso; inclusão tácita da audiência; informalidade consciente de apresentação, modelada sobre uma prática ou jam; o dançarino é apenas uma pessoa; deixa a dança acontecer; todos são igualmente importantes.
Contact-Improvisation baseia-se na sensação do toque e no equilíbrio entre duas pessoas. Os parceiros em dueto tocam muito um ao outro e, por meio do toque, a informação sobre o movimento de cada um é transmitida. O treinamento pauta-se em seis aspectos: 1. Atitude; 2. Senso do tempo; 3. Orientação do espaço; 4. Orientação do parceiro; 5. Expansão da visão periférica e, 6. Desenvolvimento muscular (Matheson, 1993). Albright (1997, p. 90) vai eleger o Contact-Improvisation para representar o corpo com deficiência, argumentando que esse método o faz com precisão e diferentemente, porque não tenta recrear a moldura estética do corpo clássico ou o contexto de dança tradicional.
As três abordagens que apresentamos neste trabalho têm fundamentado a proposição de um programa de Dança-Educação dirigido a crianças e jovens com necessidades educacionais especiais e/ou não visuais. A seguir, indicaremos outros parâmetros que podem nos auxiliar neste trabalho.

Aspectos a serem considerados num programa de Dança-Educação
Um programa que busque desenvolver a educação através da dança e do movimento teria grandes chances de ser bem sucedido se atingir metas tais como: a) desenvolver por meio do movimento a consciência de um indivíduo integral: corpo, mente e emoção centralizados; b) ampliar o repertório de movimento; c) facilitar o autoconhecimento corporal por meio da interação social; d) observar e analisar o movimento, e) promover a formação estética; f) favorecer que os participantes possam opinar sobre as atividades realizadas; g) buscar técnicas propícias, levando-se em conta a singularidade de cada corpo e h) produzir conhecimento a partir da experiência e divulgar.
Alguns estudos sobre o desenvolvimento e aprendizagem do movimento têm buscado sistematizar princípios básicos para sua aplicação, dentre eles estão Overby (1991), que apresenta informações teóricas e sugestões práticas a partir da revisão das pesquisas na área de aprendizagem motora, enquanto Sherborne (1996) propõe uma metodologia para o desenvolvimento de crianças e jovens com necessidades educacionais especiais, por meio do movimento e a partir dos estudos de Rudolf Laban.
O primeiro aspecto a ser considerado nestes estudos é o papel do feedback. Conforme explica Overby (1991), esse serve como fonte de informação, meio de reforçamento e motivação para continuar trabalhando. O feedback intrínseco pode ser derivado do nosso próprio sistema sensorial e o extrínseco, de uma fonte externa, como o professor ou uma gravação de videoteipe. Um professor que vai trabalhar com a educação do movimento e que gostaria de ter como resultado um ensino efetivo deve levar em conta certos aspectos instrucionais. Alguns pré-requisitos seriam: a) conhecimento pleno por parte do professor da habilidade motora a ser proposta para os alunos; b) ser capaz de descrever e relembrar (mentalmente) a atividade realizada pelo aluno; c) identificar os aspectos corretos e os incorretos da atividade desempenhada pelo aprendiz; d) sugerir correções a serem implementada na próxima vez que o aluno realizar a atividade. Em relação aos princípios instrucionais o professor deverá: a) observar o desempenho do aluno naquela atividade antes de qualquer comentário ou correção; b) observar a atividade além de um ângulo; c) solicitar ao aluno que descreva o que fez; d) tocar o aluno durante a atividade; e) sempre observe o aluno realizar a atividade após uma correção ter sido aplicada (Magill apud Overby, 1991).
Especificamente, Sherborne (1995, p. 106) sugere que os professores que trabalham com alunos com necessidades educacionais especiais tenham ou desenvolvam as seguintes qualidades: a) estabilidade emocional; b) capacidade de relacionar/respeitar o aluno com necessidades educacionais especiais; c) senso de humor e habilidade para jogar/brincar; d) franqueza e honestidade; e) resistência e vigor.
Um sistema que poderá nos auxiliar nessa busca de alternativas é a observação e análise do movimento. Fitt (1996) discute em seu artigo sobre Movement behavior as diferenças qualitativas do movimento. Explica a autora: a análise do Movement behavior propõe um sistema que focaliza sobre os elementos mais básicos do mover-se para a distinção entre os estilos de movimento. Esses elementos são: tempo, espaço e força. A análise qualitativa do movimento se pauta na identificação e análise de diferentes possibilidades de qualidades no desempenho de uma mesma ação de um indivíduo ou grupo. Essa análise tem quatro suposições: 1. O ser humano funciona como ser integral: mente, corpo e emoções não funcionam separadamente, mas são integrados com sinergia numa ação e reação humana; 2. Cada indivíduo tem uma característica e padrão único de movimento. 3. Há uma correlação entre movimento e outros modos de comportamento, tais como personalidade, expressão de emoção, padrão de processamento de informação cognitiva e todos os aspectos de comportamento; 4. É possível ampliar a extensão do modo caraterístico de um indivíduo usar o tempo, espaço e força.
Um aspecto muito importante a ser considerado na dança educação está no reconhecimento de que nenhum padrão de movimento é bom ou ruim. Em seu estudo, Fitt (1996) explicita que todos os padrões de movimento têm um valor potencial pelo próprio fato de poder se mover em certas circunstâncias. No trabalho com pessoas com necessidades educacionais especiais, um programa que busque ampliar o repertório de movimento deve ser pensado como uma contribuição para o desenvolvimento daquela pessoa, à medida que esse trabalho vai possibilitá-las usar com mais eficiência e qualidade o seus movimentos.
Finalmente, esse trabalho cujo objetivo foi fazer uma reflexão sobre a Dança-Educação, partindo de uma experiência intercultural, nos possibilitou perceber que um dos desafios para os professores no contexto britânico está em manter a dança como uma atividade curricular relevante e intensificar o seu desenvolvimento. Enquanto no contexto educacional brasileiro o desafio pode ser incluir a dança como uma atividade curricular e capacitar o professor para ensiná-la a todos os alunos, inclusive às crianças e aos jovens com necessidades educativas especiais. Esperamos que as idéias aqui apresentadas possam incentivar a efetivação da Dança-Educação como uma área de conhecimento.


Dance-education: the body and movement in the space of knowledge
ABSTRACT: The aim of this paper is to reflect on Dance-Education in the context of an intercultural experience, involving teachers and researchers from both Brazil and Britain. It will show the dance as area at knowledge, comparing the teaching and teachers training between these two respective countries. It will explain the relationship between creation, performance, observation and dance appreciation. It will discuss the video as a strategy for dance education teaching. It will recognise its spaces of learning as well as the possibilities of cultural exchange and the new meaning single and multiple bodies, through the contemporary dance perspective.
Key-words: Dance-Education, Teaching, Different body.


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* Professora adjunta do Departamento de Estudos Especializados em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mailidamara@ced.ufsc.br
 

Maria, Rainha da Paz!

Maria, Rainha da Paz!
Rogai por todos nós... Mãe do mundo!

Você imaginava?


"VOCÊ IMAGINAVA ...
QUE APRENDERIA ENQUANTO ENSINAVA...
QUE DANDO RECEBERIA...
QUE BRINCANDO CONSTRUIRIA...
QUE SERIA PROFESSORA E GUIA???
VOCÊ IMAGINAVA...
QUE DEIXARIA MARCAS PROFUNDAS COM SEUS EXEMPLOS E SEUS OLHARES, TRANSFORMANDO LÁGRIMAS EM RISOS E GARGALHADAS???
VOCÊ IMAGINAVA QUE CHEGARIA ESSE DIA EM QUE SEUS ALUNOS DIRIAM AO MUNDO INTEIRO "MINHA PROFESSORA, EU TE ADORO!!"
SE CHEGOU A IMAGINAR ALGUNS DESSES MOMENTOS, COM CERTEZA, EM SEU CORAÇÃO JÁ TINHA A ESSÊNCIA DESTA LINDA PROFISSÃO!!!!
(MARIA ROSA NEGRIN)

Lilás

Lilás